sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A menina de 30 anos

No meu último aniversário pedi pra que meu melhor amigo não comprasse um presente, mas que escrevesse um. Ele resgatou nossa infância e adolescência em um texto curto e fabuloso. O texto abaixo é muito bom, fantástico, e é a cara do Cleber.




há quanto tempo foi? ela passava aquela hora, calçando tênis surrados que seguravam sobre os tornozelos as joelheiras, pernas branquíssimas cortadas apenas por esfolões e marcas de cicatrizes, talvez feitas pelas pedras daquela mesma rua de calçamento irregular onde brincou na infância, naquele tempo os vizinhos ou quase vizinhos, amigos ou quase amigos jogavam vôlei na rua, uma rede suspensa com a ajuda de um abacateiro e outra árvore que já não lembro que nome tinha, ela vestia camiseta preta de músicas que eu também gostava, jogávamos vôlei todas às tardes, principalmente, por minha parte, por causa de outra menina que agora não vem ao caso, além das camisas pretas tínhamos vários amigos em comum, na verdade eram amigos incomuns que de comum dividiam a vontade de experimentar a vida, trocamos a quadra improvisada pela calçada de três irmãos, sepultura no dez, cigarros e calças rasgadas, horas no terraço contanto e ouvindo histórias de alucinação, teto, festas, era como se estreássemos o mundo ali, paridos num sábado qualquer, pretos de fumaça nos colocávamos de boca seca na calçada da Pati, a única que não parecia se divertir com nossa revolução sem causa, Pati era a dona da casa, vez por outra, a Pati queria nos varrer de lá com sua vassoura, mas com o tempo ela se acostumou e acabamos fazendo parte da família, a casa da Pati ficava a uma quadra de nossas casas, aliais dividíamos a mesma quadra, um pedaço de mundo, não era vizinha de frente, nem de lado, mas sim, aos fundos, nossas casas eram ligadas por um terreno onde o pai dela plantava mandioca e milho, onde por vezes fizemos um atalho para nossos planos para mais tarde, todas as ruas do bairro tinham nomes de países ou cidades, eu morava na Berlim, ela morava na Bolívia, ficamos próximos, ela trabalhava numa gráfica, eu vagabundeava e de vez em quando ajudava meu pai com pequenos serviços de marcenaria, ela tinha um jeito peculiar de caminhar, o corpo subia e descia, como se embaixo dos seus pés houvessem duas molas que a impulsionavam para cima, os cabelos também lembravam molas, encaracolado-castanho-claro, depois preto-pintado, voz e celebro pulsantes, sorriso metálico, lembro dos tempos do freio de burro, ela andava com aquele negócio na boca e era muito estranho, menos para ela que parecia nem ligar, à noite quando eu estudava no Marechal Bormam voltava de ônibus para casa, ela vinha a pé do Zélia onde eu também estudara, mas já tinha sido expulso, eu fui expulso de todos os colégios que estudei, mas é claro que isso não vem ao caso, ela me esperava no ponto de ônibus para contarmos o que tinha rolado naquele dia, depois ela foi para a faculdade estudar artes visuais, desenhos, esculturas, gravuras, ela sempre me contava tudo, estudar eu não estudava apenas ia ao colégio para matar aula, beber cachaça e ir ao fliperama, às vezes à tarde ela ia fazer serviço de banco e passava no fliperama, além de mim também tinha um dos nossos o nego Beto que se chamava Umberto e se perdeu pelo mundo, coca-cola, uma ou duas fixas e lá ia ela com os boletos na mochila, a mochila era um acessório obrigatório no seu vestuário, ela continuou enlouquecendo na faculdade, eu continuava vindo do colégio onde os anos escolares pareciam parar no tempo, há quantos anos foi? o tempo! sabemos muitas coisas um do outro, coisas que só admiti para ela, confissões e desatinos, minhas dores, remorsos, meus cabelos brancos, dores nas costas, meu mau humor, meus cabelos brancos, sim, há quantos anos foi mesmo? de felicidades baratas, sanduíches no prato, fotos p&b, zilhões de partidas de sinuca, bitucas de cigarro divididas até a última ponta, voltar para casa cuspido, ralado depois de descer rolando uma rua, andar no marilda-movél sem soalho, sem um puto no bolso depois de ver um show de rock num bar de putas, fazer quilômetros andando de costas, quando deixamos escapar aquele tempo? de cintilações fugazes, porres tão homéricos que acordar no dia seguinte era um milagre, todas as nossas inseguranças e revoluções, onde encontrá-las? como engolir hoje esse gosto anestésico das nossas farmácias cheias de tudo? como recuperar aquela trilha sonora de walkman gravada em fita cassete e voltada na unha? com aquela voz que se ouvia de longe: o que tem na geladeira hoje?

Primavera, 2010.

Cleber

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